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— Dobrar pra frente, gringo! Afastar as pernas e abrir as nádegas!

Era véspera de Natal, dia 24 de dezembro de 1984. O dia ainda não tinha terminado. Pouco antes da meianoite.

Eu estava cercado por quatro policiais militares.

Um deles colocou uma luva de borracha fazendo com que os dedos estalassem bem próximo do meu rosto e realizou movimentos como se ele quisesse soltar as mãos para executar uma peça ao piano.

— Não vou falar mais — gritou o policial fardado.

Ele me agarrou brutalmente pelo queixo com a mão direita e apertou dolorosamente os dedos no meu maxilar. As luvas cirúrgicas transparentes exalavam um cheiro desagradável de látex. Como quando a gente abre a embalagem de alumínio de uma camisinha e o cheiro ainda fresco da borracha sobe ao nariz.

— Afaste as pernas e abra as nádegas. O máximo possível! Acredite, é melhor que você mesmo o faça, se não quiser que a gente rasgue o seu cuzinho!

Os policiais sorriam maliciosamente. Fazia um calor infernal e a sala era pequena como um depósito e mobiliada apenas com uma mesa. Não havia sequer uma cadeira. Embora eu começasse a entrar em pânico, pareceu-me aconselhável não resistir, ficar calado e fazer aquilo que exigiam de mim. Pelado sob a fria luz néon, estava desprotegido e à mercê dos olhares dos quatro policiais. O da luva lambuzou o dedo médio com um creme, passou por trás de mim e apertou minha nuca para baixo. Seus colegas me seguraram firmemente nessa posição, pelos antebraços.

Então, seu viadinho, abre essa bunda!

— Humilhante! Especialmente quando se é obrigado a entregar o próprio ânus. Os dois que me seguravam exalavam um cheiro nojento. Suas camisas estavam empapadas de suor e, independentemente do lado para onde eu virasse a cabeça — para a direita ou para a esquerda —, meu nariz quase mergulhava numa axila fedorenta. Não gritar, sobretudo não gritar, resolvi. Minha boca estava completamente ressecada. Agora sentia que o policial se punha ao trabalho brutalmente e empurrava o dedo médio pelo meu esfíncter, sem consideração. Embora eu mantivesse os dentes firmemente apertados, deixei escapar um leve gemido.

— Olha só, o alemãozinho está gostando — disse odiosamente um dos tiras. Por escárnio, ainda me acusavam de estar gostando. A “revista corporal” doía desmedidamente. Não podia me rebelar. Seguravam-me brutalmente para baixo enquanto o outro enfiava o dedo até não poder mais no meu traseiro e remexia no meu reto.

Mais ou menos uma hora antes havia sido apanhado no Aeroporto Internacional do Galeão, no Rio de Janeiro, ao tentar contrabandear um quilo de cocaína pela alfândega. Havia apostado muito alto — e perdido!

Parece que o gringo não tem nada escondido no traseiro!

— Depois de um tempo, finalmente me largaram. O esfíncter me doía e, quando o policial tirou a luva, vi que havia sangue grudado nela.

— Vista-se — mandaram.

Rapidamente, enfiei minha calça jeans e agarrei uma camiseta limpa que estava caída no chão. À procura de drogas, a polícia havia espalhado negligentemente todo o conteúdo da bolsa de viagem. Os policiais trabalhavam metodicamente e também não deixaram de verificar nos lugares mais impossíveis. Para terem absoluta certeza, haviam até cortado a sola do pé direito do meu tênis.

— Arrume suas coisas dentro da bolsa!

— O que vai acontecer comigo? — perguntei, desesperado.

— Vá fumando um cigarro aí e fique quieto — disse o policial que alguns minutos antes havia enfiado o dedo médio no meu traseiro e me jogou um maço de Hollywood. — O que vai ser? Você fica aqui até alguém o levar para a Praça Mauá, para a sede da Polícia Federal. Pelo visto, gringo, você não vai comemorar este Natal na Alemanha, e nem os próximos.

Levaram-me para fora da sala, para uma cela que trancaram atrás de mim abandonando, aos meus pensamentos. Somente então tomei consciência de que me encontrava numa situação extremamente difícil. Havia muito tempo que o meu avião partira sem mim e, a essa altura, deveria estar sobre o Atlântico, a caminho de Frankfurt.

Duas semanas antes eu havia saído do frio úmido da Alemanha para viajar para o Brasil. Com a firme determinação de comprar um quilo de cocaína para contrabandeá- lo de volta para a Alemanha. Anteriormente, já havia estado duas vezes no Rio de Janeiro. A primeira vez, aos 18 anos, e depois mais uma vez, aos 19. Desde que me conhecia por gente, havia sonhado com o Rio de Janeiro. Em casa, eu tinha vários livros sobre o Brasil, havia absorvido tudo o que havia para ler sobre este país, acompanhava reportagens televisivas e assistia aos documentários sobre o carnaval. Copacabana, o Pão de Açúcar, as praias maravilhosas, a cachaça e as garotas mais bonitas do mundo. Tudo isso havia me atraído como um ímã.

Saí de casa aos 15 anos. Aprendi a profissão de cozinheiro num restaurante francês, que funcionava dentro de um hotel. Morava num quarto ali também. Tive de aprender muito cedo a me virar sozinho. Pode-se dizer que passei direto, sem transição, da escola para a vida adulta. Para uma vida na qual se é obrigado a trabalhar por cada centavo que se gasta. Meus pais viviam separados. Aprendi muitas coisas que as pessoas de minha idade aprendem com mais vagar.

Para mim, o Brasil havia se tornado uma idéia fixa e, como sou uma pessoa que transforma o mais rapidamente possível uma determinação em ação, consegui realizar esse sonho logo depois de meu décimo oitavo aniversário. Havia economizado ferozmente. Tinha concluído meu estágio e nada no mundo poderia me impedir de comprar uma passagem para o Rio. Na medida em que pretendia ficar o máximo possível, decidi comprar uma passagem válida por um ano, com a volta aberta. Não tinha noção exata do que eu queria fazer concretamente no Brasil. Isso seria resolvido no local. Minha intenção genérica era procurar um apartamento barato, talvez conhecer uma mulher legal e, possivelmente, encontrar trabalho como cozinheiro. Na verdade, o que mais me agradava era a idéia de ficar ali para sempre e emigrar. Pensar assim é um privilégio da juventude. Não planejar nada e ver o futuro de maneira otimista!

No Rio, até mesmo minhas expectativas mais ousadas foram superadas. Era exatamente como eu tinha imaginado incontáveis vezes na longínqua Alemanha. Depois de ter passado uma noite no Hotel Trocadero, na avenida Atlântica, de frente para a praia de Copacabana, conheci o Volker, um alemão fracassado que havia chegado ao Rio sete anos antes para se estabelecer como autônomo, junto com sua namorada brasileira, abrindo uma escola de dança. Pode-se dizer que esse encontro foi o começo daquilo que três anos depois me levou para a sala de revista onde enfiaram o dedo no meu cu.

Volker era de Colônia. Ele me causava uma impressão estranha. Estava acabado, era desleixado e gaguejava tanto que era difícil compreendê-lo. Volker se virava ao ajudar turistas inexperientes a resolver negócios. Qualquer europeu que chega ao Rio de Janeiro se dá conta rapidamente de que, em toda parte, as pessoas procuram extorqui-lo mais do que aos nativos. Quem não sabe das coisas é explorado. O hotel era caro demais para mim. Eu havia decidido agüentar o máximo possível com o meu dinheiro. Não ligava para luxo e o meu dinheiro teria durado somente algumas poucas semanas no Hotel Trocadero. Ainda que Volker não tivesse me despertado muita confiança, dei-lhe uma chance e pedi que procurasse um alojamento mais barato para mim. Para ele, isso era uma tarefa fácil; na mesma noite providenciou um apartamento mais em conta no Hotel Praia Leme. O aluguel mensal equivalia, convertido, a quatrocentos marcos alemães. Era pequeno e modesto. Um quarto mobiliado, uma cozinha minúscula e um banheiro com chuveiro e bidê. O local era fantástico. Ao me debruçar um pouco na janela do sétimo andar e virar a cabeça para a esquerda, podia ver a praia de Copacabana. E, atrás dela, a imensidão infinita do oceano Atlântico. Simplesmente fantástico!

O gaguejar de Volker era insuportável. Eu terminava cada frase que ele iniciava, procurando completar a toda pressa as palavras que faltavam e oferecer todas as variantes possíveis, até Volker acenar com a cabeça. Como um computador que experimentasse apressadamente todas as combinações para quebrar um código cifrado. Volker resolvera a questão muito bem. Conseguiu um alojamento em conta e lhe dei algum dinheiro como recompensa. Não obstante, tomei a decisão de aprender português imediatamente, para me tornar independente. No fundo, ficava aborrecido por depender de outras pessoas.

Passado algum tempo, Volker não se tornou exatamente o meu melhor amigo, mas volta e meia nos encontrávamos. Não demorei a perceber que freqüentemente pessoas se dirigiam a ele e sussurravam-lhe algo em tom de conspiração. Na maior parte das vezes, Volker desaparecia então com elas num canto e lhes entregava secretamente algo — que eu não sabia o que era. Quando lhe perguntei o que isso significava, ele me explicou que vendia cocaína. E eu, que sequer havia experimentado haxixe, não sabia o que pensar disso. As drogas eram para mim um mundo desconhecido. Eu só as conhecia das ações de prevenção da escola. Certa vez, inclusive, junto com toda a classe, havíamos feito uma visita à Secretaria de Saúde, para sermos advertidos sobre os perigos das drogas. Numa vitrine de vidro, podiam-se ver entorpecentes. Christiane F., as vítimas fatais de drogas, que aumentavam a cada ano, e os viciados esfarrapados que circulavam na região próxima à estação ferroviária haviam impregnado a minha mente. Drogas — era uma coisa que não se devia começar a consumir em hipótese alguma. Em minha opinião, esse era o caminho direto para a desgraça.

Reagira conseqüentemente à proposta amigável de Volker de também experimentar uma vez alguma coisa.

— Você mesmo pode tomar essa merda — lanceilhe, indignado. Como é que ele podia se atrever a me oferecer algo assim? — Você nunca mais fale nesse assunto comigo. Nunca tomaria uma merda dessas! — (Pudera!) Naquela época, eu tinha uma posição muito determinada em relação às drogas e, nem com muito esforço, poderia imaginar cair nessa armadilha uma vez. Isso era algo que só podia acontecer a idiotas ineptos, mas comigo não!

O que Volker não conseguira comigo devia acontecer na companhia de garotas de beleza sobrenatural. De resto, com o passar do tempo, pude comprovar que a gagueira de Volker diminuía assim que ele se encontrava sob o efeito de um pouco daquele pó misterioso. No Mabs, um bar logo em frente ao Hotel Meridien, conheci duas garotas lindas quando estava sentado embaixo de um guarda-sol com Volker, tomando uma garrafa de guaraná de canudinho. Era o início do verão, havia milhares de sensações maravilhosas à minha volta e, então, apareceram essas garotas lindas e se sentaram à nossa mesa. Naquela época, eu era um jovem muito atraente; alto, saudável, com uma silhueta malhada e um rosto bonito. Os cabelos louros e os olhos azuis me transformavam, para as mulheres brasileiras, num príncipe encantado. Eu tampouco podia me queixar de falta de interesse na Alemanha, mas aqui, no Rio, sentia-me desejado pelas mulheres com incessantemente. Era como se eu pudesse ter qualquer garota e, no fim, era isso mesmo, já que eu curtia no meu apartamento com uma diferente a cada dia. Elas eram loucas por mim.

Mantive minha posição durante duas semanas. Sem que eu tomasse verdadeiramente consciência do fato, todas as pessoas com quem eu me relacionava usavam cocaína. É fácil imaginar as circunstâncias. Clima paradisíaco, as mais belas praias do mundo, dinheiro suficiente no bolso e cercado pelas garotas mais irresistíveis.

Essas duas garotas queriam de Volker o de sempre. Naquele momento, ele estava sem nada, mas acreditava que poderia conseguir alguma coisa sem problemas. Por isso, tomamos um táxi para Botafogo, em minha opinião um dos bairros mais interessantes do Rio de Janeiro. Os velhos casarões com madeiramento à mostra, resquícios da época colonial, chamam a atenção pela beleza. Também digno de ser mencionado é o clube de futebol conhecido mundialmente, que tem sua sede ali. Na realidade, eu não tinha motivo algum para ir junto, mas Christina, que estava sentada na minha frente, vestia uma saia jeans muito curta. A toda hora, ela cruzava as pernas e, quando o fazia, podia-se ver uma calcinha imaculadamente branca, que me parecia uma promessa de paraíso. Assim, fui com eles para Botafogo. De qualquer maneira, não tinha nada melhor para fazer. Tudo era novo e excitante para mim. Podia praticamente cheirar a calcinha de Christina, e quem sabe que surpresas agradáveis a noite ainda desvendaria. Volker morava numa pensão em conta, onde as baratas multiplicavam-se. Desapareceu rapidamente em outro quarto, mas logo voltou. À primeira vista parecia um abrigo para sem-tetos. Descobri mais tarde que se tratava de um alojamento estudantil, onde Volker tinha um quarto minúsculo. As duas garotas e eu nos sentamos sobre o seu colchão imundo e infestado de percevejos. Sua roupa de cama estava manchada e era pouco convidativa. Se fosse minha, teria sentido vergonha e tentado pelo menos escondê-la de minhas visitas, e de jeito nenhum teria passado essa vergonha diante de duas garotas tão bonitas. Na nossa frente, havia uma mesa redonda de madeira e uma cadeira de vime, onde Volker se sentou. Tremendo, jogou dois pacotinhos sobre a mesa gasta, onde havia um cinzeiro abarrotado e um dicionário. Sabrina abriu um dos pacotinhos, despejou tudo sobre a mesa e bateu o pó com uma lâmina de barbear que ela havia tirado magicamente das profundezas de sua bolsa. Por um lado, todos esses preparativos me repugnavam e, por outro lado, também me fascinavam. Na Alemanha, as drogas eram tão proscritas pela mídia que a proibição por si só já exercia um encanto; e, então, percebia como as garotas lidavam com naturalidade com essa matéria, que tinha sido marcada tão negativamente e havia sido tão demonizada. Como elas se concentravam seriamente para preparar o entorpecente, como se se tratasse de uma refeição deliciosa. Reinava silêncio. Ninguém falava. Todo o processo de bater com a lâmina de barbear lembrava quase um ritual religioso. Caso Volker não estivesse sentado à mesa, não teria havido motivo algum para desconfiar. Naquela noite, o diabo fez uma apresentação muito tentadora, sob aforma daquelas duas garotas. E, para que eu mais tarde não pudesse me queixar do emprego de métodos desleais, também sentou-se o gaguejante e decaído Volker à mesa. Ainda assim, não era justo. Garotas tão atraentes teriam amansado e engabelado até o homem mais desconfiado.

Logo em seguida apareceram na mesa quatro linhas perfeitas diante de nós. Enquanto isso, Christina havia transformado uma nota de um cruzeiro num canudinho, e enfiado a extremidade maior em seu nariz. Então, debruçou-se sobre o pó, aspirou metade de uma linha por uma narina e jogou a cabeça para trás. Fungou ruidosamente para sugar a cocaína para as mais profundas circunvoluções cerebrais. Debruçou-se mais uma vez e cheirou o restante do pó pela outra narina. Com um movimento solto, entregou a nota a Sabrina, que repetiu o mesmo procedimento. Depois, foi a vez de Volker. Suas mãos tremiam muito e eu quase temi que, em vez de aspirar a cocaína pelo nariz, a derramasse. A coisa ficou séria. Naquele momento, eu deveria ter me levantado, virado as costas e corrido para salvar minha vida! De repente, a nota concluiu sua peregrinação e chegou a mim. Na mesa, só havia uma carreira sobrando. Minha carreira! Acontecia como no conto de fada de Branca de Neve e os sete anões. A bruxa, desta feita sob a forma de Volker, me oferecia a maçã envenenada. E o que foi que eu fiz? Eu também aspirei aquela coisa pelo nariz, como se fosse o gesto mais natural do mundo!

O que aconteceu deveria ficar para sempre marcado em minha memória. Depois de poucos segundos, senti uma sensação de exaltação, uma euforia como nunca havia experimentado antes. Eu era perpassado por ondas de felicidade. Jamais tivera uma sensação tão indescritivelmente boa. Passamos a noite inteira no quarto abjeto de Volker nos sentindo em paz com o mundo e, sem que percebêssemos, raiou um novo dia. Esse foi o fruto proibido do qual eu nunca e em hipótese alguma deveria ter provado!

Os três meses subseqüentes transcorreram de maneira paradisíaca. Pela manhã tomava sol na praia, de tarde comia uma boa refeição num restaurante e à noite já ansiava pela primeira carreira de cocaína. Passava as madrugadas em discotecas e boates e, por fim, me deliciava com as mulheres mais quentes na cama. Quando o dinheiro acabou, peguei o avião de volta para casa. De alguma maneira, a cocaína havia me desviado dos meus antigos propósitos. Se anteriormente eu era guiado pelo desejo de procurar um trabalho sério, agora eu só me entregava ao prazer. Caso se queira comparar a cocaína com uma doença, era mais ou menos como se eu tivesse sido infectado por um bacilo pérfido. Durante o tempo de incubação, não havia motivos para queixas. Era quase como quando a gente se apaixona e só vê o lado bom, até o dia em que pisa diante do altar. Enfim, vivi ao deus dará até que o dinheiro acabou, e pensava de forma cada vez mais limitada. Quando saí do Brasil, possuía a quantia exata para comprar uma passagem de trem de Frankfurt para Nuremberg.






"Memórias do submundo"
Autor: Rodger Klingler

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